Para meu irmão Fabrício
Feynman, Richard P. Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman! – Nova edição. Tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2025. 368 págs.
As excêntricas aventuras de um físico coletadas pelo amigo Ralph Leighton (ele é filho de Robert B. Leighton [1919-1997], coautor de Lições de Física [2008] com Feynman) é um livro que Eunice Paiva (1929-2018) iria sorrir muito. Em 30 de dezembro de 1959, num encontro de físicos em Pasadena, Feynman proferiu uma palestra lendária por suas repercussões no campo da física e suas aplicações técnicas. A peça chamava-se Há muito espaço no fundo (There is plenty of room at the bottom), e nela, o vencedor do Prêmio Nobel em Física de 1965, abordava um problema – uma teoria improvável na prática na época – de manipular e controlar objetos em escalas então inimagináveis. Naquela palestra Feynman lançou as bases da nanociência e desde então muitos cientistas mergulharam nas profundezas da matéria em busca de escalas ainda menores, como micro e spin. Colocar um camelo no fundo de uma agulha deixou de ser apenas uma metáfora e a visão de O Aleph de Borges tornou-se possível quando Feynman propôs escrever todos os 24 volumes da Enciclopédia Britânica na cabeça de um alfinete.
Alguns anos depois, o nome Feynman é evocado pela escrita de George Steiner (1929-2020), em seu livro Lições dos mestres (2005). Exploração profunda e erudita, livre de pedantismo, sobre esse destino antigo e misterioso que é a profissão de professor, a sua necessidade e as formas como esta figura, não isenta de glórias, conflitos e desvalorizações, foi codificada em tudo o que pode ser ensinado e aprendido, porque parece que nada escapa a essa forma coletiva em que alguém ensina e outro aprende. Neste sentido, para Steiner não há dúvida de que o Professor Feynman constitui um daqueles ápices do que significa ser professor; e ainda mais num campo como a física, restrito aos não iniciados pela escuridão em muitos dos seus aspectos. Steiner recomenda especialmente o livro de memórias em tela de Feynman publicado a 40 anos no inesquecível 1985. Uma sorte raramente alcançada por um autorretrato bem-feito no gênero da escrita de si mesmo.
Felizmente, para facilitar e ampliar a leitura deste grande livro entre nós, a Intrínseca publicou esta nova edição. Edição que se destaca pelo capricho do seu design, e onde a primeira coisa que chama a atenção são as cores vivas da nova capa.
A tradução preserva fielmente aquele tom que Steiner descreve como alegre e nítido, distante do estereótipo do cientista que habitualmente temos, especialmente quando sobre ele se espalha a reverência aduladora que pode advir da incompreensão do Prémio Nobel. Reconhecimento, “algo como um torcicolo”, que Feynman nunca levou a sério, embora o dinheiro do prêmio lhe tenha ajudado como recentemente disse Angus Deaton, outro laureado. De qualquer forma, como ele mesmo lembra, ficou entusiasmado e gostou muito quando foi convidado de honra do Carnaval do Rio. Aliás, Feynman foi um percussionista autodidata batendo os tambores africanos e se interessou em participar de musicais teatrais com elogios da crítica, além de gostar de ser um pintor, principalmente nus femininos, uma das paisagens que mais o seduziu depois da física.

Daí podermos ver Feynman como o atomista Demócrito (460 AEC – 370 AEC) porque ambos introduzem piadas brilhantes no clima austero do pensamento. Que este físico brincalhão se refira no seu livro a temas delicados como a sua participação no Projeto Manhattan, as suas aulas e conferências (como a muito curiosa sobre como decifrar os hieróglifos maias), o seu desconforto com os programas oficiais de ensino de ciências nos EUA, bem como a falta de integridade ética e intelectual dos cientistas que acomodam a incómoda verdade da ciência à manutenção de uma posição académica e/ou de apoio financeiro. Ou quando ele se lembra de assuntos mais agradáveis sobre o exercício da sedução das garotas e dele próprio, tornando-se um especialista imbatível em arrombar cofres – independentemente de eles abrigarem segredos militares de segurança nacional, como aqueles relacionados ao Projeto Manhattan. Suas aventuras como músico em uma escola de samba durante sua estadia como professor convidado no Brasil também não foram em vão, ao mesmo tempo em que lecionou e aprimorou os planos de ensino de física, ou sua participação de projetos pró desenvolvimento por meio do ensino nas favelas no Programa Ponto Quatro. É por isso que no seu breve prefácio a estas memórias, que conseguem envolver o leitor na atmosfera de conversa e confissão com que foram concebidas, Ralph Leighton escreve no prefácio que: “Às vezes é difícil acreditar que possam ter acontecido tantas coisas malucas e maravilhosas a ele no decorrer de uma só vida”. E termina com o espanto platônico que convida a leitura: “E sem dúvida é inspirador que em uma só vida ele possa ter realizado tantas travessuras inocentes.”
Dizem que no final da Idade Média, a forma de compreender e viver a religião, foram produto da leitura atenta de algumas hagiografias, que funcionavam como prodigiosos exercícios de imaginação, cujo objetivo era provocar o leitor fazer ao seu modo o que era lido. E no início de cada vocação autêntica há um exercício de mimeses provocado por uma intensa experiência de leitura. No nosso tempo ainda pode acontecer que esta magia e se tenha esse efeito, e que jovens leitores com vontade de ser cidadãos se sintam atraídos pela força gravitacional destas memórias, as leiam e, ao virarem as páginas, experimentem o apelo, a motivação e a determinação para uma possível vocação em qualquer campo de estudos. Além do mais, podemos até mesmo sugerir, que antes de se matricular como estudante nas universidades sem antes discernir seu desejo, seria de bom tom uma conversa com o professor Feynman através de suas memórias, porque nelas um sábio mentor nos fala para nos contar com humor os caminhos que percorreu para fazer o melhor nos estudos e na vida.

Entre as sábias observações de Feynman, há algumas que são fundamentais para desvendar o que lhe serviram de base para fazer da física uma das formas de sua existência, e não apenas uma profissão para ganhar a vida. Refiro-me ao poço onde bebeu a sua paixão inabalável por esta conhecimento, mesmo em tempos de seca e/ou bloqueio intelectual. Esta roda gigante nada mais foi do que descobrir como também fez a também saudosa Nélida Piñon (1937-2022), ao ler As Mil e Uma Noites, que foi a raiz secreta de tudo que o fazia brincar com a física sem pensar se o que estava fazendo era importante ou não. Montaigne (1533-1592) já havia apontado isso em um de seus ensaios quando escreveu que eram as crianças que tinham a melhor atitude em relação ao conhecimento, porque se aproximavam dele para se divertir e brincar sem se preocupar com outros assuntos.
Ou seja: brincar com o conhecimento e ao mesmo tempo ensine aos outros como fazê-lo. Nisto reside umas das convicções profundas de Feynman contidas nestas memórias. A convicção útil para esta época que eclipsou e empobreceu a figura dos professores e professoras, essa grande invenção planetária, de que o ensino é a musa que desperta e faz mover as engrenagens do conhecimento, tanto do lado do professor quanto do lado dos alunos e alunas. Porque é esta interação milenar que fecunda questões e reflexões que mantêm vivo, sem deixar estagnar, o impulso de investigar e inovar, embora no mundo real, a inovação seja muito difícil.
Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman! constitui um legado de sabedoria que, como tal, preserva intactos seu frescor e relevância. É disso que se trata a aventura do conhecimento, alcançando com a perspectiva dos anos a colheita satisfatória do saber viver que emana dessas memórias condensadas nas memórias de Feynman. Assim, nas artes da escrita, o gênero das memórias é o espaço por excelência para essa sabedoria e torná-la conhecida aos leitores e leitoras. Por isso seja difícil escrever essa modalidade de texto pois exige uma temperatura interna com a qual deve ser cozinhada a escrita que lembra o vivido e o lido. E para nós brasileiros é em tudo maravilhoso saber de Feynman que uma pitada brasileira é, acima de tudo como dirá a nossa Rita Lobo, uma vontade de acrescentar algo especial as suas memorias e o fogo do seu cozimento permanece aceso, cuja luz convoca um público fascinado de leitores e leitoras, pois a sua a fogueira permanece a crepitar, esperando que os novos leitores e leitoras se aproximem dela.
24 de fevereiro de 2025
Ricardo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.