O que somos? Por que somos? Para onde vamos?
Quem me conhece, certamente já me ouviu fazer essas perguntas ao iniciar uma de minhas apresentações corporativas. Se tornou um clichê, confesso. No entanto, apesar de clichê, esses questionamentos deram luz a uns dos maiores intérpretes da realidade brasileira: Caio Prado Jr.
Caio, referência que é, nos entregou as pistas para analisar o Brasil contemporâneo sem a cegueira que insiste em nos atacar. Honremos, então, a herança daquele que 59 anos atrás nos ajudou a identificar aquilo que pode parecer revolução, mas não é¹.
O motivo de tamanha repetição dessas indagações por minha parte, além da clara inspiração no autor de clássicos como Formação do Brasil Contemporâneo, História Econômica do Brasil, A Revolução Brasileira e tantos outros, se dá por entender que, embora seja eu o protagonista de minha história, não a faço como quero, e é a resposta das questões que levanto que direciona a minha historicidade. Em termos práticos, não sou o que quero. Sou, na verdade, aquilo que minhas condições históricas me permitem ser.
Aliás, antes que me perca, permitam-me relacionar esses devaneios teóricos com o título do texto: a educação do Brasil projeta o futuro que se crê revolucionário, mas erra na análise do presente e por isso continua presa ao passado. Desse modo, projetamos para onde vamos antes mesmo de compreender quem somos. A ânsia por uma revolução na aprendizagem, assim, é conduzida por projetos que mal conhecem as mazelas da realidade brasileira, o que contribui para a permanência de nossos problemas estruturais, problemas esses, que, segundo Caio Prado, estão postos há mais de 150 anos.
Os problemas dos brasileiros de hoje, os fundamentais, pode-se dizer que já estavam definidos e postos em equação há 150 anos atrás. E é da solução de muitos deles, para que nem sempre atentamos devidamente, que depende a de outros em que hoje nos esforçamos inutilmente. (Prado Junior, 1961, p. 8)
Entre permanências e micro rupturas, o que somos, no fim das contas? O Brasil contemporâneo não é o de 1942.
Atualmente, somos um país em que 73% dos estudantes não atingem o nível básico de proficiência em matemática, segundo o PISA. Isso significa que 7 em cada 10 brasileiros de 15 anos não reconhecem sequer conceitos matemáticos elementares do cotidiano, um dado alarmante que nos posiciona entre os dez últimos lugares da OCDE.
Somos também um país onde apenas 5,2% dos alunos do último ano do Ensino Médio da rede pública apresentaram, em 2023, segundo dados do SAEB, um nível de aprendizagem matemática adequado. Nesses dados, inclusive, temos um aproveitamento reduzido ao passo do avançar dos anos escolares, começando com 43,5% no 5° ano do EFAI e chegando a 16,5% no 9° ano do EFAF, corroborando diretamente para os 9,1 milhões de estudantes que, até 2023, abandonaram a escola sem terminar o ensino médio, segundo o IBGE². Além disso, entre os maiores, 1 a cada 8 brasileiros com ensino superior completo é analfabeto funcional, segundo dados do INAF.
Por outro lado, o responsável pelo educando em vida escolar sequer consegue pensar na relação entre a aprendizagem da matemática, a proficiência em leitura e escrita e a aprendizagem de uma segunda língua com os índices de empregabilidade de seu filho. A realidade, relacionada ou não, é implacável, e indica 10% a mais de renda por ano concluído no ensino regular, segundo dados do Banco Mundial, maior financiador da educação no mundo. No bojo disso, o educando, cuja história é ainda mais condicionada por suas condições materiais, sofre com excesso de telas, problemas de controle inibitório, funções executivas e tudo o que a hipermodernidade³ tratou de desmanchar no ar. Como resultado, despontamos com um número abusivo de famílias endividadas no Brasil, que bate a casa dos 76,7%, segundo avaliação da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC).
Embora todos os problemas citados, vejo uma potência no presente. Afinal, sabemos o que somos e por que somos, já que parte de nosso exercício dialético foi feito pelos gigantes que interpretaram o Brasil no século passado e que foram revisitados pela academia, a qual pode contribuir com aspectos do presente impossíveis de serem teleologicamente previstos à época. O que nos resta, dessa forma, é partir de nossas condições históricas para intervir, entendendo que as soluções revolucionárias para a nossa educação não precisam ser essencialmente radicais, e sim respostas históricas para os problemas que nos colocam historicamente. Isso passa por desenhar políticas educacionais com base em evidências, investir em formação docente contínua, revisar currículos à luz das demandas cognitivas do século XXI e, sobretudo, estreitar o diálogo entre os diferentes atores envolvidos na educação.
Lucas Mattos é historiador, pós-graduando em Neurociência e Aprendizagem na Educação (USP/ESALQ) e em Gestão na Educação Profissional e Tecnológica (IFPR).
Imagem da capa: cena do documentário Pro dia nascer feliz (2005), de João Jardim.
*Texto inspirado no artigo Parece Revolução, mas é só neoliberalismo, assinado pelo pseudônimo Benamê Kamu Almudas e publicado em 2021 na Revista Piauí.
¹ – Publicado originalmente em 1966, o livro A Revolução Brasileira foi interpretado como uma crítica às teses da feudalidade e do anti-imperialismo, desconstruindo essas concepções predominantes à época. A edição mais recente foi publicada pela Companhia das Letras, em 2014.
² – Para mais, ver: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/42083-educacao-infantil-cresce-em-2023-e-retoma-patamar-pre-pandemia#:~:text=Em%202023%2C%20cerca%20de%209,de%2025%20a%2029%20anos.
³ – Segundo Marco Aurélio Nogueira, significa a “velocidade, digitalização, fragmentação, individualização, profusão de sujeitos, demandas e reivindicações seriais, mobilidade e movimentação” em grande escala, exigindo “reformas nos diversos aspectos da vida” (Nogueira, 2023, p. 66).
Referências Bibliográficas
NOGUEIRA, Marco Aurélio. A democracia desafiada: recompor a política para um futuro incerto. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial, 2023.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 1961.