O segredo dos seus votos, por Pablo Spinelli

Dedicado aos 90 anos do democrata Gilvan Cavalcanti de Melo

Um dos grandes acontecimentos que suscita o olhar de multidões é a passagem da chave de Pedro de um papa a outro. A escolha do sucessor deixa parte da humanidade em suspenso, independente das opções religiosas. Aquele que será o bispo de Roma e líder da única instituição que vergou, mas não quebrou desde a Antiguidade, a Igreja Católica Apostólica Romana, terá um peso relevante seja a esfera religiosa, seja na esfera laica.

A cinematografia sobre temas relacionados à Igreja, suas lideranças, seus problemas e seus acertos é farta. De A noviça rebelde a Dois Papas, de A canção de Bernadette a O nome da rosa; de A Missão a O Silêncio temos de tudo. Mas eis que surge um filme maduro, reflexivo, com ênfase em atuações e no poder da palavra. Há cerca de 20 anos seria o filme favorito ao Oscar. Com roteiro conciso, afiado, seria um neto da antiga Nova Hollywood dos anos 1970, como Rede de Intrigas e Todos os homens do presidente.

O filme não questiona a escolha do Papa a partir do Espírito Santo, mas sugere repensarmos que a escolha de um Papa ecoa dialeticamente a conjuntura: dela são feitos os votos e o leitor nela atua. A História nos mostra isso. A título de exemplo, três papas.

Leão XIII escreveu sua Encíclica Rerum Novarum em 1891 com objetivos claros: criticar o capitalismo vitoriano de intensa exploração operária e ao mesmo tempo, apresentar uma alternativa aos socialismos e anarquismos que vigoravam no meio operário, especialmente quando partidos socialdemocratas conseguiram amealhar votos da classe subalterna e de frações da classe média.

João XXIII – que foi criticado pelos católicos tradicionalistas como “Maçom esquerdista” promoveu o Concílio Vaticano II (1961), nesse, a instituição se desfez de rituais medievais, como a missa em latim e por um ecumenismo que fez e faz os tradicionalistas verem tais decisões como aberrações heréticas.

Por último, a queda do bloco socialista na Europa e o colapso do sistema soviético poderiam acontecer, mas seriam diferentes se não fosse a condução de João Paulo II, que no Brasil teve grande acolhida, desde torcida de futebol com cânticos até a explosão diante da afirmação que “se Deus é brasileiro, o Papa é carioca”. De cepa conservadora, seu papado ceifou a Teologia da Libertação dentro do clero com a mão poderosa do futuro Papa Bento XVI.

Papas Leão XIII, João XXIII e João Paulo II.

Esse olhar histórico – que não se esgota nesses nomes, pois Pio XI foi decisivo para o fortalecimento e legitimidade do Fascismo da Itália depois que Mussolini atendeu ao seu pedido de perseguir os protestantes italianos (e depois, os judeus)¹ – tem como ponto de partida a seguinte pergunta: o que será da Igreja Católica no pós-Francisco, o primeiro sul-americano com o anel de Pedro?

O filme O Conclave (2024) apresenta conflitos políticos e humanos de grande magnitude a partir da morte de um Papa de matriz liberal. Nesse contexto, os tradicionalistas querem a volta de uma pureza perdida no já citado Concílio Vaticano II com duas lideranças, uma, europeia (Sergio Castellitto) e outra, africana (Lucian Msamati). Do outro lado, há os perfis mais liberais liderados por um cardeal moderado e um italiano progressista (Stanley Tucci). E no meio, o gestor do Conclave, o decano Thomas Lawrence, interpretado de forma excepcional por Ralph Fiennes.

O filme tem frases de efeito, retiradas literalmente do livro homônimo que lhe serviu de base, de autoria de Robert Harris. O espectador vai se confrontar com temas como o papel da dúvida; das mulheres na igreja; a xenofobia; as falhas morais, no passado e no presente, cometidas pelos cardeais – uma lembrança da dicotomia da infalibilidade papal e a condição humana do portador do anel de Pedro.

Destacamos aqui a fotografia que é uma pintura em movimento. As cores das vestimentas; o enquadramento das freiras – que nos remetem às operárias do passado; a dança de guarda-chuvas dos cardeais e o papel da sombra e da luz, tema barroco, inspirado por quadros de Caravaggio.

Edward Berger dirige Ralph Fiennes em Conclave (2025)

Os temas debatidos por O Conclave encontram respaldo em dois pequenos personagens: a madre superiora vivida em plena maturidade e sabedoria por Isabella Rosselini e o novato cardeal mexicano que esteve em frentes de guerra na Europa e na Ásia vivido pelo estreante e único não-ator, Carlos Diehz. Ambos precisaram de apenas uma cena para exposição de seu trabalho. É um filme que mostra com vigor, maturidade e reflexão a necessidade da construção e permanência de uma Frente Democrática. O filme em uma cena mostra que o tempo da mudança existe como nos lembra Joaquim Nabuco e Tocqueville. Há o tempo da mudança pelo movimento da Terra, no caso do filme, passos de tartaruga. Mas ela, a mudança, vem.

¹ – Kertzer, David. O papa e Mussolini: A conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa. Ed. Intrínseca. Rio de Janeiro, 2017.

 

Pablo Spinelli é Doutorando em Ciência Política da CCJP/UNIRIO e Professor da rede pública de Saquarema e da rede privada do Rio de Janeiro.

Compartilhe:

1 Comentário

  • Vagner Gomes

    Ansioso para ver esse filme.

Comentários

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Textos relacionados:

Aqui desejamos criar uma cultura política democrática e republicana.

© 2023 Created with Royal Elementor Addons