Não é possível estabelecer os limites de linhas para definir a carreira de Ney Matogrosso. Portanto, é melhor o denominar como um ser humano universal em tempos das cobranças por uma identidade por vezes censora. Esse é o desafio do roteiro do filme “Homem com H” dirigido e roteirizado por Esmir Filho que apesar de seu premiado “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009) agora ganha um reconhecimento do grande público por uma perfeita escolha de elenco com destaque para Jesuíta Barbosa.
Uma obra sobre o amadurecimento de um artista num contexto das transformações inacabadas de uma sociedade que testemunhou uma modernização conservadora. O centro-oeste brasileiro, que será o novo eldorado da expansão do agronegócio e das forças conservadoras no século XXI, é caracterizado em cada tabefe que um Ney criança recebe no início do filme. Cenas fortes que emocionam o público pela coragem em expor as raízes de nossas contradições históricas.
“Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou um cara”
O afastamento de Ney Matogrosso dessa realidade diante da agressividade de seu pai nos coloca diante dos dilemas da ruptura para se fazer presente no “campo do adversário”. Então, temos sua vida militar disciplinada e que aparentemente lhe acompanhou por toda a vida.
“Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara”
O filme fez uma escolha primorosa em não se alongar por muitos minutos no início da carreira na banda Secos e Molhados uma vez que se trata de uma cinebiografia com muitas possibilidades de diálogo com elementos contraditórios da cultura política nacional-popular. O sucesso de “Minha mãe é uma peça”, além da interpretação de Paulo Gustavo, se deve muito a esses elementos novelescos da dramaturgia brasileira. Homem com H é um “filme-novela” que emociona, gera indignação, faz rir, tem romances e cenas fortes.
“Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para”
O inclassificável Ney Matogrosso faz parte desse movimento que precisava de uma voz que expusesse esse país ainda muito ibérico com seu verniz americanizado. E os movimentos corporais estão presentes desde as primeiras cenas do filme. Um filme que ganha mais movimento no avanço do tempo em gestos e diálogos. Batalhas numa carreira que poderia ter se encerrado, mas o artista demonstrou que sempre soube se reinventar num momento de censura imposta pela ditadura militar.
“Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta
A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para.”
De forma delicada observamos que o “lugar de fala” recebe uma observação crítica no momento da dúvida sobre se seria apropriado interpretar um “forró” que deu origem ao título do filme. Essas pequenas doses biográficas ganham muita força no conjunto da vida do artista que nunca se deixou ser prisioneiro de “rótulos”. Assim, o filme também nos faz pensar muito sobre a necessidade de repensar as ações e sobre o compartilhamento das dúvidas e incertezas.
“Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para, não para
Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes, os meus dias são de par em par
Procurando agulha num palheiro
Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros”
Estamos diante de uma obra que nos permite observar que o país se democratizou e, por conta disso, muitas mudanças nos permitem considerar que mais que sermos exagerados é o momento de dosar no tempo da revolução passiva que não para. Não será a instrumentalização do ódio como prática iliberal que melhor nos definirá como uma nação. Não há espaço para o revanchismo numa sociedade que faz a prática do perdão como nas cenas finais da relação entre o pai e o filho.
“Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro”
Enfim, inclassificável a força do Amor nas conexões de diversas canções. E botemos o nosso bloco na rua.
Vagner Gomes é Doutorando em Ciência Política no PPGCP-UNIRIO.