Num momento em que se escuta com frequência as palavras de ordem “Sem anistia!”, o Brasil inicia as festividades de carnaval marcado por uma dobradinha especial com a 97ª edição do Oscar e a tripla indicação de Ainda Estou Aqui. O filme, que conquistou tanto a crítica quanto o público, representa um marco para o cinema nacional ao abordar de forma sensível e contundente as memórias da ditadura e chama atenção aos desafios das democracias contemporâneas, com inevitável atenção à norte-americana principalmente após a vitória, na eleição e na política, de Donald Trump, e o início do novo governo.
Nesta entrevista que dá sequência à tradição do Voto Positivo, o professor e historiador Pablo Spinelli analisa como a premiação de 2025 chama atenção para a necessidade da virtu para a construção de novas “arquiteturas” na política, tanto global quanto doméstica. Da força de O Brutalista às disputas nas categorias de Melhor Ator e Melhor Direção, o professor submerge ainda mais no contexto e provoca: “A crise de direção é em muitos lugares, não apenas no Oscar, né?”, aponta ao discutir a categoria de Melhor Diretor. Quanto à Ainda Estou Aqui, o define como “um filme de alcance democrático por discutir uma instituição que atinge a todos: a família” e provoca: “faltou essa cena no filme com Ulysses dizendo que tinha ódio e nojo da ditadura e que a Carta de 88 é a Carta de Rubens Paiva”. Quanto às chances de Fernanda Torres, destaca: A Academia chamar o centro – a Fernanda – para o prêmio seria uma arte da política, grosso modo, uma reforma ministerial que deu certo.
Confira a entrevista completa:
VP: O Oscar de 2025 será num momento de questionamentos da postura liberal Woke e do identitarismo no mundo. Será que isso se refletira nos resultados de Melhor Filme?
Creio que após tantas insistências em premiações que no geral fizeram coro à fragorosa derrota política e eleitoral com o segundo mandato de Donald Trump, a Academia caminhou pela busca de uma frente democrática com vários filmes, diretores, fotógrafos, atores e atrizes, roteiristas que não se fecham em uma bolha. Vimos filmes que independente da sua qualidade artística não foram filmes impactantes, com a exceção de “Parasita” e de “Oppenheimer”. Os EUA num autoflagelo puritano querem se punir por conta de grandes problemas da sua formação, mas qual a sociedade que não tem esqueletos no armário? Dentre os filmes indicados há um que fala da arte sob opressão, do sonho – ou seu fim – americano, que é “O Brutalista”. Temos uma história de uma stripper que conhece e se enamora um filho de um mafioso russo, uma contraface do longínquo “Uma Linda Mulher”, por tratar da exploração sexual. Há o filme que se tornou muito conjuntural, “Conclave”, a partir dos problemas de saúde do papa atual e, claro, nós estamos lá na constituição dessa frente democrática que ainda não sabe como fazer, mas sabe que deve existir. A possível vitória de “O brutalista” pode ser válida esteticamente e pelo seu tema, mas mais uma vez o público não irá ficar 4 horas no cinema com um intervalo de 15 minutos.
VP: A vitória de Trump ocorreu numa dobradinha com um Vice, J. D. Vance, no qual seu livro de memória foi adaptado ao cinema e recebeu indicações ao Oscar. Podemos sugerir alguma indicação nesse ano que siga essa linha?
Sobre o tema da memória familiar e a resiliência diante de problemas complexos temos “Ainda estou aqui”. Creio que o roteiro adaptado vá para “Conclave” sendo seguido de perto por Um completo desconhecido”. Para Roteiro Original há a possibilidade de “Anora”, que tem crescido nas últimas semanas em propaganda e premiações. Correm forte “O brutalista” e “A substância”, seja pela temática da imigração – as mãos que construíram a América, como na música do U2 – e do etarismo sobre as mulheres.
VP: Nas indicações a categoria Melhor Ator estaria a clivagem mais politizada do Oscar 2025? Se for de outra opinião, poderia explicar?
O favorito é o Adrien Brody. Ele já mostrou sua competência e no filme feito por um cancelado, “O pianista”. Mas não fez algo tão marcante. É como disse, o tema da imigração é forte para um governo de muros, de caça a imigrantes ilegais que viraram sinônimos de estupradores e ladrões; mas meu gosto pessoal pelo que construiu ao longo da carreira e pela brilhante atuação seria Ralph Fiennes, um ator que não me lembro de ter feito algo ruim. Não vi o filme sobre o Trump com o Sebastian Stan, que é um ator que tende a ter uma carreira mais sólida no futuro. Colman Domingo é bom ator, diretor, e lamento que se defenda a escolha dele em redes sociais por ser negro e gay. O talento dele transcende isso.
VP: Nós temos visto um silêncio sobre a categoria Melhor Diretor na mídia tradicional. Ao que se atribuiria esse fenômeno? Temos uma “crise na Direção” na sociedade?
A crise de direção é em muitos lugares, não apenas no Oscar, né? Cadê Clint Eastwood por “Jurado Nº 2”? É um homem idoso que ainda tem algo a dizer sendo preciso em sua mensagem, sem pirotecnia. É natural que uma nova geração chegue e tenham oportunidades para acertos e erros, como a diretora de Nomadland que foi muito ruim no filme da Marvel. James Mangold, que concorre por “Um completo desconhecido”, fez o ótimo “Logan” mas perde para dois diretores que fizeram filmes muito pessoais. O obstinado Brady Corbet que levou anos para concluir seu projeto – “O brutalista” – e Sean Baker (“Anora”). Jacques Audiard é uma indicação que costuma aparecer nesse quesito, o diretor estrangeiro. Gostaria de ter visto Walter Salles, sem qualquer ufanismo.

VP: “Ainda estou aqui” tem chances reais para vencer na categoria Melhor Filme estrangeiro depois de ser “destronado” para “Emília Perez” no Globo de Ouro e recentemente no Bafta?
Quando se afirma que “Emília Perez” perde oportunidades por conta das opiniões racistas e preconceituosas de um dos rostos do filme deixa de debater o essencial. Ele é um bom filme? Talvez seja um dos filmes mais superestimados dos últimos anos. Não estou sendo “Pacheco” (os mais jovens terão que pesquisar a Copa de 82 para pegar a referência). A falsa polarização não é de hoje. Lembra de críticos de “A vida é bela”? Só que nesse caso, “Emília” é um filme cheio de estereótipos, apelativo e com clichês. Um Almodóvar (outro idoso esquecido) teria feito algo muito, muito melhor. Creio que “Ainda estou aqui” ganhe o Oscar de Filme Estrangeiro. Seria bom lembrar que há dois outros bons concorrentes disponíveis no streaming: o dinamarquês “A garota da agulha” (atuações excelentes, fotografia, direção de arte e roteiro) e o iraniano “A semente do fruto sagrado”. Filmes que mereciam mais destaque na mídia.
VP: A indicação de “Ainda estou aqui” na categoria Melhor Filme (fenômeno inédito na língua portuguesa) seria alguma indicação importante?
É importantíssimo. Cacá Diegues, o último sobrevivente do Cinema Novo, conseguiu ver essa indicação. Que não seja uma chuva de verão. Triste saber que o presidente atual só viu o filme agora e sai numa foto sem a presença e fala da Ministra da Cultura. A indicação desse filme foi goela abaixo dos extremistas que odeiam o Brasil nos dois espectros políticos. Um grupo fala que não abordou o racismo na Ditadura; outro, que não houve a tortura e reinventam a vida de Rubens Paiva. No Brasil há uma sanha de punitivismo e de críticas à transição democrática. Eunice nos mostra que sorrir e seguir adiante não significa esquecer. Fernanda Montenegro nos mostra isso em segundos quando assiste sobre o marido na TV. Esse seria o momento de se discutir o cinema brasileiro como indústria.
VP: “Ainda estou aqui” seria um filme com a cara da subida na rampa de Lula em 2023 ou de Ulisses Guimarães levantando a Constituição de 1988?
Todos os filmes que seriam aquela rampa nada ganharam. E o pior, não foram vistos. Temos um filme que conseguiu mais de 5 milhões de pessoas de bilheteria. Jovens, idosos, esquerda, direita, centro, heteros, trans, negros e brancos estão aí, correto? Esse público é a “Diretas Já” silenciosa. Um filme de alcance democrático por discutir uma instituição que atinge a todos: a família. Temos o cachorrinho, algo que já ficou consolidado na memória nacional com a “baleia”, o cachorro de “Vidas secas”. Selton Melo fez um pai que todo filho gostaria de ter. Uma família que passa perrengue da classe média. Finalmente, um filme de classe média, como os argentinos falam tão bem. Engraçado é saber que os ranzinzas que criticam o que o filme não aborda são os mesmos que assistem aos filmes do Ricardo Darín e não questionam a ausência de indígenas. Sob o seu tema: faltou essa cena no filme com Ulysses dizendo que tinha ódio e nojo da ditadura e que a Carta de 88 é a Carta de Rubens Paiva.
VP: Na sua opinião, qual o filme com melhores indicações para ganhar o Oscar de Melhor Filme?
Pela obstinação, pelo empenho do diretor, pelo tema caro aos americanos, “O brutalista”. Um filme que é enxuto, com elenco afiado, ótimo roteiro e com excelente fotografia é “Conclave”. Acho que esses dois são os mais prováveis. Completando o pódio, “Anora”.
VP: Vamos a pergunta que vale milhões. Fernanda Torres poderá surpreender no dia 02 de março ganhando a estatueta na categoria de Melhor Atriz?
Já não seria mais surpresa. A grande surpresa foi no Globo de Ouro. Ela fez uma campanha com o diretor que me fez lembrar uma militância disciplinada e tarefeira e de caráter internacional. Não houve deslumbramento. Houve alegria. O pessimismo da razão do diretor com o otimismo da vontade da atriz. O propósito desta campanha não é o Oscar em si, mas a visibilidade do filme, da história e do cinema brasileiro. A Academia gosta de premiar atores e atrizes que fizeram muitos trabalhos no passado e foram esquecidos e depois fazem um filme e aí há a compensação. Kim Basinger, Jessica Lange, James Coburn, Jack Palance são alguns exemplos. Demi Moore fez um filme que não é para todos os gostos, mas foi corajosa numa atuação física surpreendente. Outro caminho é a aposta no novo talento para o mercado. Gwyneth Paltrow foi isso quando tirou o Oscar da Fernandona. Pode ser esse o olhar para Mikey Madison (Anora). Mas há muita, muita chance da Fernanda vencer como terceira via. A Academia chamar o centro – a Fernanda – para o prêmio seria uma arte da política, grosso modo, uma reforma ministerial que deu certo. É responder ao Trump que sem o Brasil é quase impossível um bom caminho para a ordenança global, pois aqui, como Eunice e Fernanda nas entrevistas, sorrimos mesmo em dias nublados e afirmamos que ainda estamos aqui.
Entrevista: Vagner Gomes de Souza
Edição: Marcio Junior
2 Comentários
Gostei muito! Explica de um jeito interessante como o Oscar não é só sobre atuar bem, mas também sobre campanha e estratégia. Faz a gente pensar de um jeito diferente sobre a premiação.
Emocionante menção ao Cacá Diegues e parabéns pela lembrança da personagem “Baleia” de Vidas Secas (um livro que deixou de ser lido no Ensino Médio e no país do Presidente que tem origens no Nordeste).