A série “Cidade de Deus: A luta não para” foi lançada em 2024 e comprovadamente demonstrou ter um elenco qualificado e um roteiro com fôlego para muitas temporadas uma vez que a cultura cívica carioca pode ser abordada em variadas formas. Para além do debate da segurança pública, nós ali acompanhamos possibilidades a serem aprofundadas na Escola de Samba, na “pelada de futebol”, no Funk carioca com a presença feminina e LGBTQI+, na rinha de galo e etc. As qualidades técnicas dessa ficção são muito bem vindas para que tenhamos condições de abrir um mercado para a produção audiovisual para muitos artistas e técnicos da periferia que ainda não vivenciam a cultura da militância sindical do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão do Estado do Rio de Janeiro (SATED-RJ).
Todavia, como foi uma série em que há uma disputa eleitoral e lançada num ano eleitoral, nós nos atemos a elaborar algumas considerações sobre seus 6 (seis) episódios. A comunidade da Cidade de Deus muito se assemelha a uma “Pólis” grega por mais que o roteiro tenha suas pinceladas de decolonialismo. Na política, diferente de uma democracia ateniense, o “chefe de facção” é um tirano que se aproxima em muito de uma cultura espartana. O associativismo da sociedade se conecta a esse espírito ateniense, mas com suas aproximações também com a “cultura cívica” do americanismo anunciado em Democracia na América por Alexis de Tocqueville.
Esse encontro da filosofia política de Platão, com seu diálogo sobre a justiça presente em A República, e os elementos renascentistas da dramaturgia de William Shakespeare na sua tetralogia sobre a história da Inglaterra (Ricardo III, Henrique IV em duas partes e Henrique V) é uma sugestão que o roteiro da série nos permite vislumbrar. O debate sobre a justiça e a sequência de lideranças de facção com um narrador que busca um olhar sobre a luta pelos valores humanistas dessa “Cidade de Deus – Pólis”.
Essas considerações, que são feitas a despeito das intenções dos roteiristas Sérgio Machado, Armando Praça, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro e Rodrigo Felha, nos permite validar que o sentido da liberdade republicana em Hobbes anunciada por Quentin Skinner está em seus primórdios uma vez que a cultura política identitária tenciona os episódios numa espiral em que o último seria um clímax de um posicionamento “antissistema” no discurso da personagem Berenice em campanha para a eleição ao legislativo carioca. Após reafirmar sua negação da política, a personagem diz estar numa disputa eleitoral para fazer uma polarização entre o “nós” contra os “eles” da elite branca não favelada.

Que fim levará essa narrativa de “Berê” na próxima temporada? Ela alimenta o discurso da anti-política do populismo contemporâneo que contamina os novos sujeitos sociais do empreendorismo nas favelas. O neoliberalismo ganha proporções onde o “fascismo de mercado” dialoga com um populismo que empurra a “pólis” da Cidade de Deus para um laboratório sobre a crise da representatividade política no município do Rio de Janeiro. Os mediadores da política ainda se fazem presentes com novas variáveis, porém ainda se faz necessário a leitura de um livro pouco lido nos dias atuais nos cursos de Ciência Política – Voto e máquina política (1982) de Eli Diniz.
A série “Cidade de Deus: A luta não para” ganha contornos do filme “Tropa de Elite 2” no seu apelo político sem que haja uma mediação. Os mediadores morrem (“Curió”, “Barbantinho”, por exemplo). A qualidade dramática da série com grande desempenho do elenco feminino, em que se destaca a atriz Roberta Rodrigues, se perde nessa ousadia de fazer uma abordagem sobre a política, porém o Maquiavel é um clássico sem leitura. Os ensinamentos de Dias Gomes, que deixou como legado a telenovela O Espigão (1974) e a peça de teatro O Rei de Ramos (1979), seria nossa sugestão para enfrentar os perigos ao lidar com esse tema político explosivo. Além disso, o tema evangélico emergiu apenas no ponto da vingança ao contrário da possibilidade de uma “redenção”. Lembremos que um dos integrantes do “trio do Cabeleira” foi para a Igreja evangélica no filme homônimo que deu origem a série. Sua reaparição seria interessante nas próximas temporadas. Mais uma vez em Dias Gomes temos o romance Decadência, ou, O procurador de Jesus Cristo (1995).
Desatar o “nó” do debate político é uma necessidade para que o tema da chamada periferia não seja uma “onda liberal”, mas uma pauta das forças democráticas pela garantia de temas universais. Nosso Brasil vai além da percepção do pensamento político “uspiano” que nos tem deixado o legado da crise dos valores democráticos. A série poderia ser mais carioca em seus temas políticos e democráticos.
Vagner Gomes de Souza é Doutorando em Ciência Política no PPGCP-UNIRIO.
7 Comentários
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É fascinante a maneira como a obra cinematográfica se correlaciona com outros temas!
Ótimo texto, ótimas referências!!
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É fascinante a maneira como se correlaciona a obra cinematográfica com outros temas!
Ótimo texto, ótimas referências!!
Gostei muito do texto, professor. Já havia assistido o filme e
agora pretendo assistir a série.
Que texto deslumbrante. Ainda não vi a série, mas tenho certeza que vai ser bem legal e interessante como o texto!
Parabéns Vagner
Que texto impecável. Não via a série, mas já esperava que se tratasse disso.
Ainda não vi a série, mas ler esse texto, me faz querer assistir, e tentar enxergar com esse olhar.
Parabéns Vagner.
Acho que Buscapé na Segunda Temporada vai pegar em armas. Narrar e fotografar os acontecimentos não muda nada.
Acho que Buscapé na Segunda Temporada vai pegar em armas. Narrar e fotografar os acontecimentos não muda nada.
Achei o texto interessante, principalmente por destacar a força do elenco feminino e criticar como a série trata a política. Concordo que ela poderia se aprofundar mais e trazer uma visão mais próxima da realidade carioca. As referências ao Dias Gomes também foram muito boas. Parabéns Vagner.