O 100º dia de Donald Trump no cargo passou. Eles não foram silenciosos, nem foram prudentes e muito menos gentis. Na verdade, nada disso era esperado. Ele chegou ao poder anunciando o som e a fúria tal como viu William Faulkner (1897-1962) na sua fina leitura de Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616), não apenas para seu país, mas para o mundo inteiro. Ele ameaçou mudar tudo e acabar com as guerras. A invasão da Ucrânia pela Rússia, pela qual os invadidos foram incompreensivelmente culpados, terminaria em 24 horas, e o massacre em Gaza seria resolvido com a expulsão da população palestina e a construção de um resort no Mediterrâneo.
Nos Estados Unidos da América (EUA), ele governaria sem consultar ninguém, vingando os supostos abusos infligidos à sua nação durante 80 anos pelo resto do mundo com tarifas, deportando os estrangeiros e derrubando os intelectuais que trabalham nas universidades, perigosos berços do pensamento democrático e liberal.
Suas simpatias foram direcionadas a figuras fortes, especialmente aqueles da extrema direita, soberanistas nostálgicos dos antigos regimes totalitários. Embora considere os personagens democráticos “desagradáveis”, Putin acaba se revelando um amigo (embora desonesto e que frequentemente engana), e Netanyahu um outro íntimo. Os amigos na acepção de Carl Schmitt (1888-1985).
A competição com uma China destemida é feita por meio de tarifas massivas, abalando a economia global. Não há dúvida de que o Canadá, um aliado leal de longa data, não deixará de ser um estado independente. A compra da Groenlândia a todo custo não está em discussão tampouco a dita reanexação do Canal do Panamá.
No final das contas, chega de conversa mole, vamos estilhaçar tudo com sangue, tornar a América grande, na hipótese de alguém não ter entendido, significa que todos os outros se submetam ao que ele acha que tornaria a América grande. O que lhe ilumina os olhos e o faz rir é quando chefes de Estado, movidos pela responsabilidade, o visitam na busca de refrear seus excessos. Trump, com seu enorme narcisismo temperado com vulgaridade, zomba de suas boas maneiras e ressalta que eles vieram para beijar seu tarifaço.
Tudo isso poderia ser a história de um louco muito pitoresco se não fosse tão sério para o mundo. Se ele não estivesse degradando a democracia norte-americana por meio do uso expandido de ordens executivas, por meio de abusos aos direitos humanos, por meio do enfraquecimento das instituições democráticas, por meio da exclusão da palavra democracia do vocabulário de seu país, prejudicando assim os valores civilizacionais que emergiram dos acordos globais após a Segunda Guerra Mundial.
Mas não é só isso, o relatório recente do Fundo Monetário Internacional projeta um crescimento global de 2,8% para 2025, uma revisão para baixo em relação às estimativas anteriores. O principal motivo está nas tensões comerciais, principalmente por meio da guerra tarifária de Trump, que afetou a economia global, especialmente o comércio internacional, que deve crescer apenas 1,7% em meio a um mar de incertezas políticas e restrições comerciais. Entre as economias afetadas está, é claro, a dos próprios EUA, mas não há mal que dure cem anos, nem erro que passe despercebido em cem dias.
Após o choque inicial, a resistência interna e externa a Trump começou em seu país e em grande parte do mundo. O que os alertas dos especialistas não conseguiram, a economia está conseguindo. Os bolsos dos amigos bilionários começaram a ficar mais vazios, e isso não é mais divertido para eles.
A globalização provou ser muito mais do que comércio. Ciência e tecnologia são mais universais do que Trump pensava, e mesmo um mensageiro dos Céus, como ele mesmo se definiu, não é onipotente. As instituições democráticas estão começando a perder sua paralisia inicial, os espaços de conhecimento estão se manifestando, a opinião pública norte-americana tende a mudar e os indicadores de apoio estão desaparecendo, a Europa está começando a acordar e o mundo está começando a tremer em todos os lugares. Nem mesmo os mais poderosos conseguem fazer tudo em um mundo tão interconectado.
Nos últimos dias, começou uma certa mudança de tom, que vai e vem, mas que pode moderar, pelo menos parcialmente. O cansaço das guerras, da crueldade e do bullying (do alarme da série Adolescência) está começando a se fazer sentir. Não é por acaso que a morte aceita com serenidade e tenacidade pelo Papa Francisco (1937-2025), clamando até o último momento pela convivência pacífica e por um mundo mais justo e habitável, tenha despertado admiração em crentes e não crentes de diferentes culturas e histórias, uma nostalgia positiva por um mundo com menos dureza e maior capacidade de compreensão.
Os tristes resultados desses 100 dias mostraram os perigos de um caminho de confronto e podem abrir um caminho de esperança para uma mudança nas relações internacionais. O que está acontecendo no mundo todo deveria servir de alerta para o Brasil e os brasileiros e brasileiras, num momento em que temos um governo marcado pela continuação mediana de repertorio pré-pandêmico. Daí essa centena combinou momentos de aguda exaltação, forte incerteza, falsas polarizações e prioridades equivocadas, que o farão entrar para a história sem dor nem a glória e seu cortejo de horrores como narrou a Globo de Ouro 2025 Fernanda Torres, mas também elementos de certa maturidade e aprendizado que o impediram de cair em um precipício capaz de prejudicar a bem-sucedida volta democrática do país, o que lhe permitiu continuar tendo a possibilidade de corrigir seu curso como se vê com as claudicantes histórias ministeriais recentes.
No entanto, os primeiros passos da competição no longo processo eleitoral de 2026 acontecem. Até aqui carecemos de debate programático, de uma visão para o Estado, de uma vontade de gerar políticas públicas convincentes que impulsionem o crescimento, de menos fragmentação política e de um maior nível de governabilidade. Pelo contrário, há muita discussão no sistema partidário, cálculos mesquinhos, absurdos retóricos e o eterno retorno vazio as ideologias. Tomara que prevaleça o que atualmente aparece apenas por meio de pouquíssimas vozes: a densidade de ideias sobre a Frente Democrática que sempre nos possibilitou progredir. Lembremos que quando isso prevaleceu, o Brasil avançou.
5 de maio de 2025
Ricardo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.